Incontáveis mortes, muitas horas de jogo e a sensação de recompensa ao passar aquela parte difícil onde você tomou uma surra anteriormente. Quando o Demon’s Souls saiu, muitos não botariam tanta fé até caminhar por Boletaria e ver que existia, naquele RPG medieval e sem expectativas, um gameplay sensacional naquele castelo desolado e nas ruínas tão antigas quanto a própria existência do mundo. Demon’s Souls saiu de “apenas um game de RPG medieval” para “um dos melhores games que eu já joguei na minha vida”, ao presenciar a evolução do personagem com o próprio jogador.
E isso só foi possível graças às decisões de gameplay da From Software, com o sistema de save automático e constante e a questão de administrar a perda quando você fracassa. Em Demon’s Souls o jogador tem mesmo medo de morrer, pois se ele fracassar o personagem volta pro começo da fase, perde todas as almas que ele adquiriu ao matar os inimigos e tem de enfrentar todos os inimigos novamente, pois eles voltam regenerados (incluindo os chefes). Um caminho sem volta, já que ao morrer o jogo já salva automaticamente. O game dá uma chance pra recuperar as almas, tendo de voltar ao mesmo lugar e reivindicar o seu poder. Se fracassar nessa tentativa, você perde aquelas almas para sempre. E ainda tem os inimigos, que não são fáceis de derrotar, sendo que até mesmo um inimigo fraco pode te derrotar se você vacilar.
Fora a possibilidade de matar os NPCs do game, numa decisão única e também sem volta, tendo consequências em todo o restante da progressão, por conta do save ser bloqueado para cópias.
Demon’s Souls – Um RPG sádico e fenomenal
Esses elementos fizeram com que o Demon’s Souls virasse sinônimo de cult entre os jogadores de PS3. Inimigos sádicos como a Miralda, aquele dragão vermelho que sai “limpando a ponte com seu assopro flamejante”… e o Yurt! Ah, o Yurt, aquele cara que deixou muita gente com raiva…passagens marcantes que entraram para a história dos games de RPG do Playstation 3. Claro que ele não tem gráficos potentes e tem um enredo praticamente inexistente, mas muitos nem se importavam muito. Passar aquele Flamelurker e comemorar do mesmo jeito que a vitória do Brasil num jogo de Copa são momentos indescritíveis. Fora as locações, tão sádicas e cheias de perigos, desde aquele corredor com uma caveira com 2 katanas e capaz de te matar em segundos… ou mesmo uma ponte na Torre de Latria que parece ter saído de um filme dos Jogos Mortais.
Uma continuação começou a ser desejada pelos jogadores. Alguns platinaram e também queriam mais. Outros até platinaram mais de 1 vez, ganhando o nosso respeito eterno, isso antes da descoberta e da divulgação do bug de almas. Então, numa Tokyo Game Show, a From Software anunciou o “Project Dark”, mostrando algumas cenas e com um gameplay tão visceral quanto o Demon’s Souls. Estava iniciando o início de um novo hype, por conta justamente do Demon’s Souls ser um RPG top, mesmo com as suas deficiências de enredo e a parte gráfica relativamente pobre (com o Final Fantasy XIII na frente de qualquer game de RPG até então). Passou algum tempo e ela anunciou o nome oficial: Dark Souls.
Dark Souls foi um dos poucos games que comprei, sem esperar, no lançamento. A evolução de Demon’s Souls em todos os aspectos, e é isso que terá na nossa análise. Um game como poucos, que ganhou recentemente uma versão pra PC e terá um DLC com mais conteúdo em breve. Com vocês: Dark Souls!
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Desta vez, Dark Souls seria um sucessor espiritual, pois o Demon’s Souls é propriedade intelectual da Sony. Com a Namco Bandai como distribuidora, eles puderam lançar o game também para o Xbox 360, para que os jogadores do console pudessem, também, ter a oportunidade de sofrer junto com os jogadores do Playstation 3. No Japão o game ficou exclusivo pro console da Sony, mas é claro que muitos japoneses devem ter arrumado versões ocidentais da versão 360, e hoje os jogadores do PC tem acesso fácil pelo Steam.
Em Dark Souls, o gameplay visceral se manteve, com diversas alterações. Do Demon’s Souls ela herdou o sistema de combate básico: ataque e defesa, com poucos comandos e fáceis de aprender. Diferente de outro RPG que o inimigo faz um ataque físico e te acerta mesmo se você estiver a alguns metros de distância, em Dark Souls você pode desviar do ataque ou mesmo defender. E diferente do Demon’s Souls, eles decidiram eliminar a barra de magia, deixando apenas a barra normal e a de stamina, tendo uma espécie de sistema de turnos em tempo real. Cada ação de ataque ou defesa gasta um pouco da barra de stamina, e se a barra acabar você fica sem defesa ou sem poder atacar, o que pode ser a diferença entre matar um chefe ou morrer na tentativa, tendo de tentar novamente depois.
Mas não quer dizer que não tenha magias no game. Agora elas são divididas em tipos e são usadas como se fossem ítens, num sistema similar ao de Final Fantasy VIII. Com um catalisador (uma espécie de varinha mágica), um talismã ou mesmo uma luva especial, o jogador pode ir usando as magias e milagres, tendo magias de ataque, defesa e milagres, que podem ajudar o jogador nas horas mais difíceis. Outro detalhe que a From Software inseriu é que o jogador pode trocar o estilo de combate sem ter perdas significativas, podendo, se quiser, usar magias e trocar por um sistema de combate mais visceral e próximo, usando alguma arma física, como uma espada. Quanto ao armamento (armas, escudos, armaduras), tem muitas opções que o jogador pode encontrar pelo caminho (ou caindo de inimigos) e elas podem ser evoluídas com alguns dos ferreiros espalhados no game, num sistema similar ao de Demon’s Souls.
Claro que aqui, igual a alguns RPGs mais realistas, as armaduras e armas tem peso e isso afeta a jogabilidade: se você está com uma armadura mais pesada que a sua força, o personagem não conseguirá correr (e nem andar direito) e as armas podem não funcionar direito. Cabe ao jogador usar as combinações mais efetivas de acordo com o estilo que ele optou por jogar, e evoluir o personagem de acordo com o estilo, maximizando o conhecimento e jogando efetivamente.
Ao iniciar um novo jogo, o jogador pode escolher o sexo do personagem, a aparência e escolher diversas classes para escolher no início da aventura, desde o clássico Cavaleiro/Knight até mesmo ladrão, feiticeiro, caçador e especialista em fogo (pyromancer), além de um ítem especial que irá lhe ajudar durante a aventura. Diferente de games como o World of Warcraft, aqui a escolha da classe não influencia muito na questão da jogabilidade, só mudando as magias iniciais e alguns atributos. Depois o jogador acaba tendo acesso as outras magias das outras classes.
Uma das novidades de Dark Souls são os bonfires. Em Demon’s Souls o único local seguro do game era o Nexus, uma espécie de igreja com diversas escadarias e uma estátua enorme, sendo a morada de quem não tinha coragem de sair pelo mundo e a morada das pessoas que você resgatava nos 5 mundos disponíveis. Quando um jogador perdia a vida durante a progressão em alguns dos mundos, o jogador voltava pro começo da fase (onde estava a Archstone) tendo de refazer todo o caminho com os inimigos de volta e totalmente regenerados. O jogador poderia optar por voltar ao Nexus para comprar ítens com o ferreiro, comprar magias com alguns NPCs e consertar as armaduras e armas. Em Dark Souls quase todas as funções do Nexus foram pro bonfire, uma “fogueira” especial, com uma espada fincada no chão.
Os bonfires ficam espalhados pelo mundo de Dark Souls, sendo a morada segura do jogador, caso ele não esteja sendo perseguido por algum inimigo. Nos bonfires a energia e o “estoque de magias” são recarregados, além do jogador poder recuperar suas armas (com uma Repair Box) e poder evoluir o personagem, gastando as almas que ele foi adquirindo. É igual no Demon’s Souls: o jogador pode adquirir almas matando inimigos ou usando alguns ítens especiais, e se o jogador morrer ele perderá as almas e terá de ir até o local da morte para recuperar a “grana” e as Humanidades (outra inovação que explicarei melhor abaixo). Com uma certa quantidade de almas o jogador troca por níveis, adicionando em 1 ponto um dos atributos principais (Força, Vitalidade/HP, aumento da quantidade de magias que ele pode carregar, e outros), que aumenta os atributos secundários (proteção contra fogo, resistência a veneno e sangramento, etc), deixando-o mais forte.
Claro que usar os bonfires tem suas vantagens e desvantagens. Ativar um bonfire é ter um checkpoint: caso o jogador morra, ele volta para o último bonfire tocado pelo jogador, e com a progressão do jogador pelo mundo, ativar a fogueira é essencial para não ter de fazer uma enorme rota que ele ralou para passar. Agora, a “desvantagem” em ativar o bonfire é ressuscitar todos os inimigos normais do jogo, tendo de enfrentar eles novamente para prosseguir. Apenas alguns inimigos especiais e mais poderosos, além dos chefes, não ressuscitam.
Ainda comentando do gameplay, Dark Souls tem, em alguns momentos, uma linearidade e o mundo é totalmente aberto. Quando o jogador chega em Lordran ele tem diversas opções de caminhos diferentes. Óbvio que os desenvolvedores foram espertos e inseriram alguns elementos para dificultar o progresso do jogador, como elementos do cenário, portas fechadas e inimigos comuns bem poderosos. Aí o jogador acaba optando por outra rota, pegando o caminho mais fácil e a rota do enredo. Mas depois de algum tempo o jogador tem mais opções de escolha, e também vai desbloqueando atalhos. Em Demon’s Souls este elemento era relativamente mais difícil, apesar da maioria dos mundos abrir atalhos para diminuir a frustração caso o jogador fracasse num chefe.
Outro elemento inserindo são as Humanidades. O enredo de Dark Souls é simples: no início, só existia neblinas, grandes rochedos, árvores enormes e os últimos dragões. Então surgiram alguns seres e pessoas com o poder dos Lords, que combateram os dragões. Após a luta, começou a era do Fogo, mas que não durou muito tempo, até surgir uma maldição afetando as pessoas vivas, que não morriam mais. Ao morrer, a pessoa se torna um morto-vivo, condenando a loucura quando perdem a humanidade. Os mortos-vivos são trancados num asilo no norte, esperando o fim do mundo. O jogador acaba tendo esta maldição, tendo de restaurar a sua humanidade para voltar à vida.
Na verdade o “estado de morto-vivo” tem a mesma mecânica de Demon’s Souls na questão de estar como “alma”. Em Demon’s Souls o jogador ou está como “alma” ou está vivo, sendo que durante o estado de alma o jogador fica com apenas a metade da energia (ou 75% caso esteja usando um anel especial), mas não é invadido por um jogador “maligno” e os inimigos são mais fáceis. Estando vivo, o jogador pode chamar ajuda de outros jogadores para ajudarem (principalmente contra os chefes) e ganha mais almas ao derrotar os inimigos. Mas eles também são mais poderosos (só que a diferença não é tão gritante).
Em Dark Souls agora são 2 estados: vivo e morto-vivo. Sai a “metade da barra de energia” e ela fica com o mesmo tamanho. Estando morto o jogador pode oferecer ajuda e ser chamado por outro jogador (via multiplayer), mas não pode pedir a ajuda de outros jogadores. Estando vivo ele consegue chamar mais 2 jogadores para entrarem no mundo dele, deixando o game relativamente mais fácil. Independente do estado, o jogador pode adquirir humanidades, que são usadas nos bonfires para ressuscitar e para a moeda de trocas de alguns NPCs. O jogador adquire humanidades ajudando o invocador a matar um chefe, caindo de inimigos, comprando de alguns vendedores ou cumprindo alguns requisitos dos Covenants. Lembrando que matar o chefe estando como fantasma não afeta a progressão oficial do jogador, como se ele fosse transportado para uma realidade espelhada, com o outro jogador sendo o personagem principal do enredo.
Aliás, outra novidade são os Covenants, que são facções que o jogador pode entrar e ter algumas vantagens, desde ter preferência em ser chamado no multiplayer até mesmo adquirir ítens para roubar humanidades ou apenas defender uma floresta de outros jogadores. O jogador pode trocar de facção a qualquer momento, mas não pode violar as regras da facção enquanto estiver em uma, sob o risco de ter a reputação manchada. Para limpar o seu nome basta conversar com um NPC especial e “pagar” em almas, podendo voltar a se ingressar em uma facção.
Outra evolução é no visual: Dark Souls é bem mais variado e bonito que o Demon’s Souls acinzentado. Florestas, vilas, catacumbas, locais mais atmosféricos, pântanos perigosos…quando o jogador passa o primeiro chefe, o impacto ao chegar em Lordran é imediato, mas não é tão impactante quanto a cidade de Anor Londo. Uma das cidades mais impressionantes que já vi nos videogames, com sua arquitetura dourada e nobre, tendo o contraste típico da era medieval: locais com glamour e esplendor em contraste com a Undead Burg e suas casas pobres. Uma beleza mortal, pois a cidade é um dos locais mais desafiadores que este que vos escreve já presenciou num game. Mesmo o jogador estando evoluído e ter passado pelo inferno na fase anterior (Sen’s Fortress), Anor Londo traz inimigos poderosos e passarelas minúsculas e sem proteção.
Só que nem tudo são flores. Com essa evolução técnica, em alguns momentos o game perdia a taxa de quadros por segundo (framerate), causando um pouco de lentidão. Em games normais eu nem ligaria tanto (mas iria reclamar mesmo assim), mas em Dark Souls se torna preocupante, justamente por conta do save automático. Teve um dia que o game travou, e quando voltei o jogo sinalizou que eu não desliguei direito, e o save pode ficar corrompido. O save é bloqueado para cópias, mas quem joga numa conta com assinatura da Playstation Plus tem a segurança de upar o save do jogo para a nuvem, podendo baixar o save depois. Mas quem não tem assinatura e os jogadores que usam contas brasileiras para jogar acaba ficando na mão, convivendo com esse risco.
Fora os bugs do game. Hoje o patch mais recente conseguiu consertar os problemas, mas no começo muitos jogadores descobriram brechas que deixavam o game mais fácil, como o exploit de almas infinitas e um bug que ferrou com a minha progressão. No covenant da floresta, por exemplo, teve uma hora que eu entrei nela e um dos NPCs simplesmente morreu, deixando com a reputação manchada (e acho que ele escorregou e caiu num penhasco, pois é a única explicação que eu teria…). Com o patch atual o custo para ser absolvido é menor, mas na época era muito alto, e acabei desanimando um pouco com as facções.
Tirando os diversos problemas de bugs e o enredo quase inexistente (tendo poucos momentos com conversas, diferente da maioria dos RPGs normais), Dark Souls é um dos melhores RPGs do Playstation 3. A dificuldade é proposital, para o jogador sentir na pele que é necessário ter cautela, e é recompensador quando ele passa por uma parte difícil. Com uma jogabilidade visceral, realista e simplificada, traz uma jogabilidade imersiva e o seu componente online é ainda inovador, trazendo ao mesmo tempo o co-op (quando 3 jogadores passam a fase e enfrentam um chefe) e competitivo, quando um quarto jogador entra na partida com o intuito de matar o líder da sala. O co-op é sempre incentivado, apesar de muitos não usarem por conta de querer jogar de uma maneira mais hardcore e difícil. Um game como poucos, mostrando que na geração atual existem games realmente casca-grossa, diferente dos jogos que carregam o jogador pela mão e tem dezenas de checkpoints.
Atualmente como desenvolvedor de software backend, mas já foi jornalista e editor de conteúdos por mais de 10 anos, trabalhando também em portais importantes como o START UOL, Card na Manga e A Pá Ladina, além de outros sites de esports e MMOs. Hoje cobre com especialidade jogos como Fortnite, World of Warcraft, souls-likes, animes, games, cultura pop e é fã de cosplays!